Coronavírus: as incertezas e os cuidados para pessoas com síndrome de Down (BBC BRASIL)

Diante de um vírus que trouxe consigo mais perguntas do que respostas, as famílias de milhares de pessoas com síndrome de Down no Brasil estão vivendo dias de angústia pelas incógnitas quanto aos efeitos da covid-19 nessa população, além de mudanças drásticas no dia a dia de terapias e ensino por conta do isolamento social.

Com isolamento social, famílias de pessoas com síndrome de Down devem buscar alternativas para estimulá-las em casa, mas também não devem sentir a pressão para atuarem como profissionais, recomenda o pediatra Fábio Watanabe

Ainda que em comunicados recentes do Ministério da Saúde a síndrome de Down não apareça explicitamente como um fator de risco, profissionais de saúde e famílias que lidam diariamente com a trissomia do cromossomo 21 (outro nome dado à síndrome, de natureza genética e causada pela existência de um cromossomo a mais) estão considerando que este é, sim, um grupo de risco.

Isso porque é significativa a parcela de pessoas com síndrome de Down que nascem com comprometimentos no coração, pulmão e sistema imunológico, e também que desenvolvem diabetes e obesidade — todas essas condições consideradas fatores de risco para a covid-19, explica o pediatra Fábio Watanabe, dos Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, um dos organizadores de um site informativo recém-lançado sobre covid-19 e síndrome de Down.PROPAGANDA

“Independentemente do número em si, todos os estudos concordam que (essas condições) são mais frequentes na síndrome de Down. Aproximadamente metade das crianças com a síndrome têm cardiopatias congênitas. A obesidade, diabetes e alterações no sistema imunológico também são muito mais frequentes nesta população.”

“Mas já que estamos falando de fatores risco, é importante falar do outro lado disso: se a pessoa não tem essas comorbidades, possivelmente o risco dela seja semelhante ou pouco maior do que a pessoa que não tem síndrome de Down. É preciso olhar caso a caso. As famílias tendem a estar muito estressadas neste momento.”Talvez também te interesse

Para ajudar, o site — criado em uma parceria da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, do Instituto Alana e do Projeto Serendipidade, e com contribuição técnica, além de Watanabe, do geriatra Marcelo Altona, do hospital Albert Einstein (SP) — traz perguntas e respostas e material de apoio sobre a covid-19 e a síndrome de Down.

O site explica, por exemplo, que a transmissão do coronavírus acontece da mesma maneira para pessoas com ou sem síndrome de Down — por isso, para todos, as medidas preventivas mais importantes continuam sendo a higienização e isolamento social.

Menina com síndrome de Down em cima da balança em consultório, observada por um médico; ambos sorriem
Image captionÉ comum que pessoas com síndrome de Down tenham cardiopatias e desenvolvam diabetes e obesidade, por isso atenção com a covid-19 deve ser redobrada

Para bebês e crianças, tudo indica até agora que os sintomas daqueles com a trissomia 21 são similares a quadros respiratórios na infância em geral, como tosse, coriza, febre, e a possivelmente dor de garganta, vômito e diarreia.

Mas o que pode mudar para aqueles com a síndrome é sua percepção e verbalização sobre alterações no corpo, por isso as famílias devem estar ainda mais atentas a sintomas graves, como desconforto respiratório, gemência, movimentos respiratórios mais frequentes e intensos, ou até rebaixamento do nível de consciência. Procedimentos de higiene pessoal, como lavar as mãos, talvez exijam também a atenção e participação de uma outra pessoa.

Ainda não há estudos publicados sobre a evolução clínica de pessoas com síndrome de Down infectadas com o coronavírus. No Brasil, também não há registros oficiais e específicos da covid-19 nessa população, mas já há relatos de vítimas pelo país.

Fábio Watanabe aponta que, não existindo ainda estudos mais direcionados, especialistas estão recorrendo hoje ao conhecimento que já existe — como sobre outras doenças respiratórias, como a influenza e a bronquiolite.

Ele explica que uma das características “mais definidoras da síndrome de Down”, observada praticamente na totalidade de crianças que nascem com ela, é a hipotonia, um menor tônus da musculatura — incluindo aí os músculos envolvidos na respiração. São comumente observadas também vias aéreas mais estreitas, características fisiológicas que em outras doenças respiratórias conhecidas podem agravar o quadro.

“Em uma situação de esforço respiratório maior, o músculo do diafragma, por exemplo, passa por maior cansaço por conta da hipotonia”, detalha.

Outro fato sobre a síndrome de Down que coincide com um dos principais grupos de risco para a covid-19 – os idosos – é que o envelhecimento imunológico acontece mais cedo para essas pessoas do que para a população em geral. Estima-se que aos 45 anos uma pessoa com a trissomia do 21 tem condições de saúde comparáveis às de um idoso de 60 sem a síndrome.

“Porém, não seria um exagero dizer que a partir dos 30 anos as pessoas com síndrome de Down já comecem a experimentar mudanças relevantes no organismo que a aproximam de um idoso”, alerta o portal Covid 19 e síndrome de Down, reforçando a importância da prevenção e atenção aos sintomas nesse grupo.

Rotinas viradas de cabeça para baixo

Já para crianças e bebês, Fábio Watanabe lembra que o “padrão ouro” nos primeiros meses e anos de vida é uma rotina de terapias de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional.

“Apesar de os conselhos profissionais terem autorizado o atendimento à distância durante a pandemia, nem todos têm recursos para continuar com terapias através da telemedicina.”

“Um dos pontos que mais geram aflição nas famílias é essa adaptação aos estímulos da criança: elas tendem a pensar que o desenvolvimento será comprometido (com a interrupção de atendimentos presenciais).”

“É importante que as famílias, dentro do seu alcance, encontrem cenários para manter os estímulos, através de brincadeiras mas também momento para que ela brinque livremente. Não é interessante deixá-la com uma agenda lotada. Ao mesmo tempo, as famílias não deveriam se sentir terapeutas dos filhos, é um peso muito grande e que gera grande frustração.”

Pais de Pedro Zylberstajn e seus dois irmãos posam sorrindo para foto dentro de sala
Image captionHenri Zylberstajn conta que o filho, Pedro, se beneficiou da convivência mais próxima dos irmãos durante a pandemia

Para a família do pequeno Pedro, de 2 anos de idade, o início da pandemia logo trouxe a preocupação com a interrupção das terapias, conta seu pai, o empresário Henri Zylberstajn. Mas, mantido o atendimento online com profissionais da rede privada e com a presença de toda a família em casa, na capital paulista — Henri trabalhando de casa, sua esposa e outros dois filhos, de 4 e 7 anos —, o empresário conta que o caçula deu um “salto impensável” durante a quarentena.

“Foi um salto no desenvolvimento global, na questão motora por exemplo — ele começou a quarentena sem andar, agora já anda com o apoio do andador. Antes, ele não falava, agora está falando sílabas”, conta Zylberstajn, fundador do Projeto Serendipidade, focado em ações pela inclusão e que participa do lançamento do site sobre covid-19 e Down.

“Ele começou a responder muito bem ao estímulo à distância com o nosso acompanhamento. Com o convívio mais próximo, os irmãos passaram a se envolver mais nas terapias. Nunca vamos substituir as técnicas de profissionais, mas a participação da família gera estímulos diferentes”, diz o empresário, acrescentando que Pedro tem comorbidades leves, mas se preocupa que o filho, tendo hipotonia e vias aéreas estreitas como muitas outras crianças com Down, possa ser contagiado com o novo coronavírus.

Henri Zylberstajn reconhece que sua família é privilegiada e isso facilita na continuidade dos cuidados com Pedro na pandemia. Mas, à frente do Serendipidade, ele diz receber relatos de outras famílias que estão tendo experiências bastante diversas — “cada criança reage de uma maneira”, destaca — e que muitas reclamam também da falta de material didático remoto acessível por parte das escolas.

Restrições de atendimento na rede pública e um histórico de saúde mais delicado tornam “desesperador” o cenário atual para Érica Alves, conforme ela descreve a situação na pandemia do filho Pietro, 4 anos. Nesses poucos anos de vida, o pequeno já teve 21 pneumonias e 20 internações, tendo hoje “todos os sintomas respiratórios que uma criança pode ter”, segundo a mãe, que mora em Itapecerica da Serra (SP).

O menino tem imunodeficiência, crises de asma recorrentes e precisa de aparelhos e traqueostomia em casa para respirar. Mas as visitas domiciliares de fisioterapeutas e as consultas rotineiras com diversos especialistas foram suspensas por conta da pandemia, ainda sem previsão de retorno. E no caso dele, esses atendimentos necessitam ser presenciais.

Érica e Pietro posam para selfie, mandando beijinhos
Image caption’Não sei se é pior ficar com ele dentro de casa ou se eu precisar sair’, conta Érica Alves sobre condição de saúde do filho na pandemia

“Meu filho regrediu muito. Antes do coronavírus, ele estava com parâmetros muito baixos, não tinha mais crises, já estava em uma situação perto de desmamar dos aparelhos. Mas tudo que ganhei em um ano perdi em 30 dias (desde a pandemia)”, conta Érica por telefone à BBC News Brasil.

Remédios de alto custo que eram retirados por ela em uma farmácia da rede pública seriam agora entregues em domicílio, mas segundo Érica, eles ainda não chegaram na sua casa. Ela conta já não ter medicamentos suficientes para lidar com uma eventual crise convulsiva.

Para complicar, o marido é vigilante e continua saindo para trabalhar fora de casa, por exercer uma atividade essencial. Ela há algum tempo não pode assumir um emprego fora de casa para se dedicar integralmente ao filho, fazendo de vez em quando bicos como secretária virtual.

“Tomamos todos os cuidados quando meu marido chega (do trabalho), ele tira tudo para entrar em casa, toma banho imediatamente. Ele não pode parar de trabalhar, porque as contas não esperam.”

“Se meu filho tem alguma crise, algum problema dentro de casa, eu não sei a quem recorrer, a unidade de saúde está fechada… E se eu precisar sair, a chance dele pegar covid é 90, 99%, por conta da imunidade dele”, afirma.

“Não sei se é pior ficar com ele dentro de casa ou se eu precisar sair. Já não consigo assimilar: quando ele está cansado, já não sei se é por conta do intestino, se é uma crise de asma ou é de tanto brincar. Está muito difícil mesmo.”

Mariana Alvim – @marianaalvim

Da BBC News Brasil em São Paulo

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