Matéria: POR SOLANGE AZEVEDO. FOTOS JOÃO BERTHOLINI E MARCO AURÉLIO – Revista Marye Claire
Uma youtuber com 173 mil inscritos em seu canal, um campeão brasileiro de polo aquático, uma modelo de uma das maiores empresas de maquiagem do mundo, um chef de cozinha formado por uma renomada faculdade do país. Criada com estimulação e incentivo, uma nova geração de jovens com síndrome de Down rompe as barreiras do mercado de trabalho e derruba o maior obstáculo para seu desenvolvimento: o preconceito
Ela quer se tornar estrela de cinema e TV. Mas, como boa jovem da geração Y, faz sucesso mesmo é na internet. Cacai Bauer é a primeira youtuber brasileira com síndrome de Down e não tem a menor vergonha de expor sua condição na rede social. Irreverente e bem-humorada, a baiana de 22 anos, que se inspira em celebridades digitais como Kéfera e Isaac do Vine, posta vídeos semanalmente. Neles, promove sessões de perguntas e respostas aos espectadores, divide sua história e faz dublagens com paródias divertidas de funks. “Sou Diva”, a versão sem malícia do hit “Bumbum Granada”, dos MCs Zaac e Jerry, por exemplo, já soma mais de 600 mil visualizações. “So-sou diva sim e daí / Beleza é o meu lema / O sol nasceu para mim / Ser Down não é um problema”, canta. “Eu sou diva, diva, diva, diva, diva, diva, sim / Eu sou gata, gata, gata, gata, gata, gata-ta.” Em todas as postagens, a mensagem é clara: a missão da baiana é combater o preconceito.
Como muitos bebês de sua geração, Cacai recebeu uma sentença de desengano dos médicos no momento em que nasceu. “Logo após o parto, mostraram que era uma menina e que estava tudo bem. Senti alegria e alívio. Aí levaram Cacai para uma sala e não me falaram nada sobre sua condição”, conta a mãe, a dona de casa Janaina Bauer, 43 anos. “Mais tarde, quando já estava no quarto, meu pai entrou chorando. Depois, meu marido e minha mãe. A princípio, achei que fosse de emoção. Mas a neonatologista que estava com eles disse que minha filha tinha síndrome de Down. Na sequência, despejou que ela precisaria de muitos tratamentos, teria uma vida limitada e que eu teria de viver para ela. Foi um choque. A maneira com que a médica falou tudo isso foi cruel, não consegui entender nada. Tanto que, quando levaram a bebê para o quarto, olhei para o berço e voltei a assistir à TV. Só fui chorar em casa. A ficha demorou uns três meses para cair.”
Cacai, no entanto, contrariou as expectativas sombrias. “O momento mais emocionante das nossas vidas foi quando ela conseguiu segurar um objeto pela primeira vez. Estávamos brincando e dei uma escova de cabelo em suas mãos. Chorei de alegria”, conta Janaina. Na época, Cacai tinha 6 meses e os manuais de desenvolvimento dos bebês preveem que possam fazer isso aos 4. Logo que começou a andar e falar, ao longo do primeiro ano de vida, a menina se mostrou desenvolta. Desde pequena gosta de dançar e diz que vai ser famosa. Fez aulas de teatro e, no ano passado, afirma que realizou o grande sonho de sua vida: lançou um canal de vídeos no YouTube. Em dezembro, já tinha 173 mil inscritos. “Não tem nada que deixe a Cacai mais feliz do que ser reconhecida na rua e, agora, sempre que a gente sai, alguém pede para tirar uma foto com ela”, conta a mãe.
Com a audiência, o espaço tornou-se uma referência para famílias que convivem com a síndrome ou com outros tipos de deficiência. Janaina diz que recebe mensagens de todo o país com dúvidas e palavras de apoio. “Sempre falo: nunca tratamos Cacai como coitadinha. Ela sabe que tem Down, mas nem por isso se sente diferente dos irmãos Luiza, 18, e Caio, 14.”
Embora a maior parte dos comentários deixados pelos seguidores seja encorajadora, a youtuber não está livre dos haters. Para protegê-la, a família faz um filtro e edita as mensagens. “Apagamos as muito agressivas”, afirma a mãe. Uma delas dizia que pessoas com síndrome de Down deveriam morrer. “Os próprios fãs são os defensores”, lembra. Um deles chegou a procurar os pais de um adolescente que postou mensagens agressivas, que o obrigaram a se retratar publicamente. “Ela nunca sofreu bullying, nem na escola regular. Essas mensagens da internet são novidade”, diz Janaina. “Outro dia leu que alguém a chamou de feia e a reação foi bem a cara dela: disse que ia ignorar. A única coisa que deixa Cacai realmente triste é ver eu e meu marido discutindo”, garante a mãe.
O sucesso na internet elevou não apenas a autoestima de Cacai como ajudou em seu desenvolvimento. “Ela não tem muita noção temporal, é algo que precisamos trabalhar. Mas já aprendeu que segunda-feira é dia de postar vídeo novo”, pontua Janaina. Vaidosa, Cacai também começou a fazer dieta para se sentir mais bonita nos vídeos. O cotidiano ainda inclui uma escola especial para jovens e adultos – ela estudou em colégios regulares até o fim do Ensino Fundamental. Foi lá que conheceu Tino, que tem paralisia cerebral e uma leve deficiência intelectual, com quem namora há um ano. “Eles só pegam na mão um do outro, a relação é superinocente”, afirma Janaina.
Mudança de paradigma
Vários jovens, como Cacai, estão rompendo com os prognósticos que receberam no nascimento e que ainda fazem parte do imaginário que se tem sobre a síndrome de Down. Ela é uma alteração genética causada por um erro na divisão celular. Em vez de dois cromossomos 21, os Downs possuem três. Isso resulta em olhos amendoados, baixo tônus muscular e deficiência intelectual – além de maior probabilidade de complicações como cardiopatia, problemas auditivos e hipotireoidismo. Com o avanço no conhecimento, as intervenções passaram a ser feitas cada vez mais cedo e a expectativa de vida cresceu de 25 anos (até os anos 70) para mais de 60 nas últimas três décadas.
A geração de Cacai teve a sorte de vir ao mundo num momento em que os benefícios de estimulação precoce já eram comprovados pela ciência e que celebridades e novelas passaram a tratar do assunto publicamente. No Brasil, o marco da revolução aconteceu em 2006, quando a TV Globo exibiu a novela “Páginas da Vida”, que trazia Clarinha, uma menina com Down. Quase ao mesmo tempo, o então jogador de futebol Romário, hoje senador pelo PSB do Rio de Janeiro, fez diversas aparições na mídia com a filha, Ivy, que também tem Down, e passou a militar pela causa. “Foi aí que a sociedade percebeu que a síndrome não é o fim do mundo”, diz Estefânia Lima, membro do Grupo de Trabalho de Inclusão do Instituto Alana. No mesmo ano, a ONU organizou a primeira Convenção sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência em Nova York. O evento ratificou a importância de mudar a abordagem. “O tratamento passou de médico para social”, diz Estefânia. “Antes, a ideia era a de que havia um ‘defeito’ a ser corrigido. Hoje, não mais. Focamos nas barreiras que precisam ser quebradas e nas adequações pelas quais a sociedade precisa passar.”
Geração Millennial
O paulistano Pedro Brandão Carrera, 21 anos, também descobriu nas redes sociais uma forma de divulgar o que aprendeu na faculdade de gastronomia. Começou mostrando no Facebook o passo a passo de alguns pratos e, recentemente, criou o canal Comidinhas do Pepê no YouTube. “Gosto de cozinhar de tudo, mas massas e risotos são minha especialidade”, diz o chef. Mas isso se tornou apenas um passatempo. Pedro acabou de ser contratado por um dos bares mais tradicionais da Zona Oeste de São Paulo, como assistente de cozinha. Ele já havia feito estágio em dois restaurantes quando soube por um amigo que o Pirajá inauguraria uma unidade e mandou um currículo. Deu certo. Ficou tão feliz que, às voltas com a abertura da primeira conta bancária, passou a dizer onde vai empregar o salário. “Quero casar, ter dois filhos e pagar as contas da casa”, afirma.
Nascido em uma família que batalhou por sua inserção, cresceu rodeado de crianças que não tinham Down. Estudou na Escola da Vila, conhecida pela postura progressista e pelo trabalho de inclusão. Pedro rendia bem e tinha uma porção de amigos. Os problemas surgiram na adolescência, quando ele começou a se interessar pelas meninas da classe. “Ele só ficava com uma delas, que também tinha Down, mas não se conformava com isso. Virou uma questão”, afirma a mãe, a pediatra Ana Claudia Brandão, de 51 anos . Por isso, engajou-se em um grupo com viés terapêutico, focado na síndrome, onde eram discutidos temas como empoderamento, formas de estimular a independência, sexualidade e uso das redes sociais. “Falavam que Pedro seria meu eterno companheiro, mas nunca aceitei essa ideia. Lutei para que ele tivesse autonomia e vida própria”, diz Ana Claudia. “Sempre desejei que fosse querido e tivesse grandes amizades. Por isso, fazia questão de ser ‘arroz de festa’ e o levava todas as vezes que convidavam.”
A surpresa aconteceu quando a escola alegou que o Ensino Médio seria complexo demais e Pedro – além de outros dois jovens Down – não poderia continuar. Apesar da insistência das famílias, a questão só foi pacificada com a interferência do Ministério Público, que entendeu que negar matrícula seria ilegal. “Houve muita conversa. Mas o mais difícil foi ter de lidar como se fosse uma briga”, lembra a diretora da escola, Vania Marincek. “No primeiro momento, não conseguimos pensar em como viabilizar a continuidade e propusemos que frequentassem a escola, mas não todos os dias, nem que ficassem o tempo todo em sala de aula.” Vania explica que o impasse aconteceu porque os três foram os primeiros com deficiência intelectual a concluírem o Ensino Fundamental no local. Pedro teve dificuldades no novo ciclo, mas com abordagens diferenciadas não desistiu e se esforçou até concluir os estudos. Acabou abrindo as portas para outros jovens seguirem o mesmo caminho. No meio do ano passado, formou-se em gastronomia no Senac. Concluiu o curso de dois anos em dois anos e meio, com a ajuda de uma tutora, fazendo provas orais e com conteúdo adaptado à sua capacidade de compreensão. “Foi mais difícil do que imaginávamos”, diz a mãe.
A importância da educação
A bandeira da inclusão, empunhada pelas famílias a partir do final da década de 1980, abriu espaço para que crianças, jovens e adultos deixassem de ficar confinados em casa. Mas foi só a partir de 2006, com a Convenção da ONU, que foi pacificado no meio jurídico o entendimento de que a matrícula em escolas comuns no Brasil se tornou obrigatória, e não apenas preferencial, conforme se costumava interpretar da Constituição. “A legislação brasileira está entre as mais modernas do mundo”, diz a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga, autora do livro Direito das Pessoas com Deficiência – Garantia de Igualdade na Diversidade. Ela lembra que, além de ser compulsório qualquer escola acolher alunos com deficiência intelectual, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em 2015, que as particulares não podem cobrar taxas extras. Ainda assim, os entraves são grandes. “É praxe colégios não recusarem a matrícula, mas dizerem: ‘Se fosse você, não colocaria seu filho aqui. Não estamos preparados para recebê-lo’”, alerta Eugênia.
Os pais de Bruno Lowenthal Kignel, de 23 anos, também desbravaram caminhos. “Optamos por olhar para o mundo de possibilidades e não para o carimbo no rosto”, lembra a mãe, a dentista Rosane Lowenthal, 50. Entre as oportunidades, Bruno encontrou-se no esporte. Foi o primeiro a aprender a bater as perninhas na natação e entrou para o time de polo aquático do Clube Hebraica, em São Paulo. Primeiro como jogador, depois como assessor do técnico. “Como o polo é um jogo agressivo, ele entrava nas partidas mais fáceis. Começou a assessorar o técnico porque ficava no banco”, afirma Rosane. Bruno não se incomodou com a função. “Meu ponto forte é a educação física”, diz o rapaz. “Fui campeão paulista e brasileiro com o treinador. Também viajei para competições em Israel, Espanha e Uruguai.” São-paulino de coração, acompanha o time pela internet. Entre as biografias que leu, estão a do técnico de vôlei Bernardinho, a do ex-jogador de futebol Casagrande e a do ex-tenista Gustavo Kuerten.
A inclinação para o esporte o levou a estudar educação física na Universidade Paulista (Unip). Deve concluir o curso, que dura quatro anos, em seis. Conta com o apoio de uma tutora e de provas adaptadas. Foi contratado pela Hebraica como estagiário. “Ele tem muitos amigos”, diz Rosane. Se vive alguma situação de exclusão ou preconceito, sai dela sozinho. Na adolescência, começou a frequentar baladas onde passou a se interessar por meninas que não tinham síndrome de Down. “Bruno sempre gostou de dançar, de música. Um dia não quis mais sair à noite. Mais tarde entendi que era porque as meninas não queriam ficar com ele”. Hoje, Bruno encontra os amigos nos esquentas das baladas e volta para casa sozinho. Está namorando Amanda, que também tem Down.
Assim como os pais de Bruno, os de Samanta Quadrado, 28 anos, preferiram não pensar nas limitações quando ela nasceu. “Foi como se abrissem um buraco e fôssemos até o fundo. Foi doído, comparações eram inevitáveis”, recorda a mãe, a dona de casa Denise Pacífico, de 52 anos, de São Paulo. “Mas conseguimos nos reerguer. Corremos atrás de estimulação precoce, escolinha, nutricionista.” A infância não foi fácil. “Ela não teve amigos e brincava basicamente com adultos e familiares”, diz a mãe. Com todas as dificuldades, Samanta aprendeu a ler e a fazer dança do ventre. Trabalhou em escritório, loja e editora. No ano passado, realizou um sonho: foi modelo da campanha #DonaDessaBeleza, da Avon, que valoriza a diversidade. “Fiquei tão feliz em participar!”, conta.
Ela teve a primeira experiência na mídia como integrante do filme “Colegas”, que conta as aventuras de três jovens com Down, e se apaixonou por um deles, o judoca Breno Viola, que também tem a síndrome. No set, fez amizade com a equipe e deu um jeito de ser convidada para um jantar onde ficou cara a cara com Breno. Deram o primeiro beijo. O namoro dura quatro anos. Os planos? “Esse é um assunto sério”, diz Samanta. “Estamos pensando em casar e morar sozinhos no Rio”, onde vive a família do namorado. Um sonho de muitos jovens, mas que, para ela, tem sabor especial de vitória.
Beleza: Carlos Rosa (capa mgt) / Produção-executiva: Vandeca Zimmermann