Por Marcelo de Araujo
Quando publicou o romance O Filho Eterno, há dez anos, o escritor Cristovão Tezza não podia prever a repercussão que o livro teria. A obra explora, através de uma narrativa ficcional, a experiência do autor como pai de uma criança com síndrome de Down. O choque com que recebeu a notícia, logo após o nascimento do filho, vai gradualmente dando lugar, no livro, a uma transformação radical na vida do pai, o narrador da história. O livro de Tezza recebeu vários prêmios e foi traduzido para diversas línguas. Mais tarde, a obra foi também levada aos palcos e, ano passado, adaptada para o cinema.
A descoberta, muitas vezes ainda no período de gestação, de que a criança esperada talvez não corresponda às expectativas que inicialmente nutriam pode ser devastadora na vida de muitos pais e mães. Com o tempo, porém, são muitas vezes as expectativas que pais e mães têm relativamente ao convívio com uma criança que tem síndrome de Down que se mostram infundadas.
Não deve ser por acaso, aliás, que nas últimas décadas tenham surgido várias obras literárias que exploram o sofrimento e a alegria, as angústias e recompensas, enfim, as contradições que muitas vezes marcam a relação de pais e mães com seus filhos portadores de algum tipo de limitação de ordem cognitiva. O escritor japonês Kenzaburō Ōe, por exemplo, prêmio Nobel de literatura em 1994, utiliza uma narrativa ficcional, no romance Uma Questão Pessoal (1964), para revisitar as diversas fases de sua relação com o filho, que nascera com uma anomalia no cérebro. O tema reaparece ainda em romances como Nascer Duas Vezes (2000), do escritor italiano Giuseppe Pontiggia, e O Guardião de Memórias, da americana Kim Edwards (2007). Recentemente, Sarah Kanake chegou mesmo a sugerir que já é possível falarmos de um gênero literário à parte: o “romance síndrome de Down” (Down Syndrome Novel).
Romances, peças de teatro, e filmes, mais do que discussões filosóficas, são muitas vezes o motor de importantes transformações sociais. Nas últimas décadas, nossas sensibilidades mudaram, talvez menos por força de argumentos filosóficos do que pela contribuição de obras literárias e filmes de ficção. Obras de ficção têm o poder de redefinir nossa percepção das pessoas ao nosso redor – incluindo, é claro, portadores de deficiências cognitivas – de um modo que a investigação filosófica, por si só, não seria capaz.
Medidas voltadas para a inclusão social de pessoas portadoras de necessidades especiais integram agora a agenda política de qualquer Estado democrático. E isso tem implicações que ultrapassam a esfera do Direito. Tornamo-nos, em muitos aspectos relevantes, mais humanos, pessoas melhores, e isso unicamente por vivermos em sociedades que incentivam a cultura e promovem a inclusão do outro.
É preciso que eu enfatize esse ponto, pois me parece que, ao mesmo tempo em que nos tornamos mais sensíveis à inclusão e mais abertos à diversidade, podemos também nos tornar mais resistentes a discussões de argumentos que, pelo menos em princípio, possam entrar em conflito com nossas sensibilidades morais.
Ao sugerir que obras de ficção têm o poder de contribuir para a redefinição de nossa sensibilidade moral, mais do que a reflexão filosófica parece capaz, não é minha intenção promover nossas sensibilidades à função de critério último da moralidade. Afinal, nossas sensibilidades funcionam também, muitas vezes, como um critério inadequado para darmos uma boa resposta à pergunta sobre se devemos ou não reprovar uma prática, se devemos ou não condenar uma ação. A imagem de dois homens se beijando em público, até bem pouco tempo, causaria (e muitas vezes ainda provoca) um sentimento de repugnância entre muitas pessoas. No entanto, ao tentarem articular uma reposta à pergunta sobre por que razão isso é errado, essas pessoas – quando não recorrem a ideias religiosas como fundamento de suas atitudes morais – contam apenas com suas próprias sensibilidades para justificar suas opiniões.
Sentimentos morais são importantes: eles ajudam a nos orientarmos num espaço social de posições políticas e atitudes morais diversas, nem sempre coerentes entre si. São eles que nos impelem a defender ativamente as causas que abraçamos e valores que endossamos. Mas, nesse espaço de posições diversas, sentimentos morais devem coexistir com as razões e argumentos que oferecemos para endossar ou rejeitar esse ou aquele tipo de prática. Considere, por exemplo, a discussão recente sobre o aumento expressivo do número de abortos de fetos diagnosticados com trissomia 21, a condição genética que leva ao nascimento de crianças com síndrome de Down.
Algumas reportagens na imprensa internacional, que já começam a ter repercussão também no Brasil, chamam atenção para a decisão de muitas mães e pais, nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, que optam pela interrupção da gestação ao saberem que a criança terá síndrome de Down. Estima-se que nos Estados Unidos o número de abortos de fetos diagnosticados com trissomia 21 seja de 67% (estatística do período 1995-2011). Na França a estimativa é de 77% (2015), no Reino Unido a média é de 90% (2011), na Dinamarca esse número chega 98% (2015). Na Islândia, praticamente 100% dos casos resultam em aborto.
É possível que esses números aumentem nos próximos anos. Até bem pouco tempo, o diagnóstico pré-natal de trissomia 21 exigia a retirada de uma amostra do líquido amniótico, que envolve o embrião. O procedimento é bastante arriscado porque a agulha necessária para a retirada da amostra pode atingir o nascituro. Mas um novo procedimento, conhecido como Teste Pré-Natal Não-Invasivo ou NIPT (do inglês Non Invasive Prenatal Testing), permite agora fazer o diagnóstico com bastante precisão e segurança. O teste exige apenas uma amostra de sangue da mãe na terceira semana de gestação.
Se uma pessoa for contra o aborto em qualquer situação, é claro que ela se posicionará também contra o aborto de fetos diagnosticados com trissomia 21. Mas nos países em que o aborto não é proibido, muitas pessoas, que não são contra o aborto de modo geral, vêm se posicionando contra a decisão de abortar nos casos em que o exame pré-natal é positivo para trissomia 21. Essas pessoas alegam que apenas por preconceito somos levados a supor que a vida com uma criança que tem síndrome de Down é ruim para as crianças e um fardo para a família. Elas alegam também, além disso, que o aborto nesses casos é uma afronta à dignidade das pessoas com síndrome de Down, uma forma velada de dizer que a vida delas é menos valiosa do que a vida das pessoas sem trissomia 21. Mas essas alegações são justificadas? Parece-me que não.
Muitas mulheres adiam a gravidez por razões econômicas. Elas preferem consolidar uma carreira profissional antes de engravidar na expectativa de assegurar mais conforto material para o filho ou filha que desejam ter. Se a segunda alegação fosse justificada, teríamos então de admitir que a decisão de adiar a gravidez por razões econômicas também representa, de modo análogo, uma afronta à dignidade das pessoas mais pobres, como se a decisão fosse uma forma velada de dizer que a vida de pessoas que vivem sem conforto material é menos valiosa do que a vida das outras pessoas.
É bem verdade que, nesse caso, há uma diferença importante: adiar uma gravidez não é a mesma coisa que interromper uma gravidez. Consideremos então uma outra situação.
O aborto é proibido por lei no Brasil, exceto em três situações: quando a gravidez representar um risco para a vida da mulher, quando a gravidez resultar de estupro, ou nos casos de anencefalia. A mulher que foi vítima de violência sexual não é obrigada a abortar. Mas se ela preferir o aborto, deveríamos então concluir que sua decisão é uma afronta à dignidade das pessoas que nasceram como resultado de um ato de violência sexual, como se decisão de abortar, nesse caso, fosse uma forma de dizer que a vida dessas pessoas é menos valiosa do que a vida de pessoas que resultam de uma relação sexual consentida? Parece-me que não.
Pessoas com síndrome de Down, pessoas que vivem na pobreza, ou pessoas cujos pais biológicos violentaram suas mães biológicas, devem ser tratadas com o mesmo respeito. É função do Estado, portanto, promover políticas públicas e uma cultura da inclusão que coíbam qualquer tipo de discriminação. Mas, no final das contas, deve caber às mulheres a decisão sobre até que ponto se consideram realmente preparadas para educar uma criança em meio à pobreza, a ou que resulta de uma relação sexual não consentida, ou que, possivelmente, terá de viver para sempre sob a guarda de outras pessoas.
O que aprendemos nas últimas décadas, e o que muitas obras de ficção deixam bem claro também, é que pessoas com síndrome de Down podem trabalhar, se tornar artistas, atletas, ou modelos sem jamais representar um fardo para pais e mães. É também função do Estado, portanto, e da sociedade civil como um todo, garantir a existência de um espaço público em meio ao qual pessoas portadoras de necessidades especiais possam desenvolver todo o seu potencial.
Por outro lado, no momento em que a trissomia 21 é diagnosticada, não é possível ainda ter uma estimativa segura do grau de independência de que a criança – e o adulto mais tarde – será capaz. Muitas pessoas com síndrome de Down terão de passar a vida inteira sob tratamento médico ou sob a guarda dos pais. Estatísticas mostram que a ocorrência de trissomia 21 é mais frequente entre mulheres acima dos 40 anos de idade. Nesses casos, é bastante provável que o filho ou filha com síndrome de Down tenha uma vida mais longa do que a da mãe. A incerteza sobre quem assumirá a guarda da criança nesses casos me parece uma boa razão para mãe se colocar a pergunta – e para o Estado conceder o direito – se deseja realmente levar adiante a gravidez.
Que tenhamos nos tornados mais sensíveis às demandas de grupos que foram discriminados em nosso passado recente, isso é algo a ser celebrado. Mas isso também não deve nos impedir de compreender as razões que, em certas circunstâncias, muitas mulheres podem ter para pôr fim à gravidez. O direito de abortar, nessas circunstâncias, não é uma forma de dizer que a vida dessas pessoas é menos valiosa. Pelo contrário, a decisão de ter levado adiante a gravidez, nas circunstâncias em que o Direito permitiria abortar, é a maior prova do amor incondicional que mães e pais podem ter por seus filhos.
Marcelo de Araújo é professor e Ética e Filosofia do Direito da UFRJ e da UERJ.