Campo Grande sediará, nos dias 24 e 25 de julho, o 1º Simpósio sobre Síndrome de Down: Do Nascimento à Idade Adulta, para que estudantes, pais, profissionais interessados e sociedade possam expandir seus conhecimentos, esclarecer dúvidas, trocar experiências e entender melhor o universo de crianças, jovens e adultos com a síndrome de Down. Haverá participação de diversos especialistas, entre eles, da pedagoga e professora da UFMS Rosana Cintra, de Campo Grande, que tem trabalho todo voltado para a inclusão social e educacional dessas pessoas. Nesta entrevista, ela aborda vários aspectos da área, que, segundo ela, precisa de atenção especial.
CORREIO PERGUNTA –
A senhora participará, nos dias 24 e 25 deste mês, do 1º Simpósio sobre Síndrome de Down, em Campo Grande. Qual é o objetivo principal do evento?
ROSANA CINTRA – Ele vem com a característica importante para todos os educadores, profissionais da área de saúde e, também, para pais de crianças, jovens com síndrome de Down, que é discutir as possibilidades que estas crianças, estes jovens, têm na questão da inclusão, das artes, dos problemas físicos, sociais, psíquicos, psicológicos; ou seja, tudo que temos dentro de nossa sociedade em que eles podem estar inclusos e que, de forma natural, podem exercer com o tempo deles, o tempo que eles têm para aprender, de desenvolvimento, que é diferenciado. O princípio da discussão é não negar as diferenças, mas aceitar o diferente, que é uma coisa independente de nossa vontade ou não, mas que é possível de ser trabalhada. As pessoas com síndrome de Down têm comprometimentos, sim, mas isso não é impedimento para aprendizagem, para o convívio social e para uma saúde plena.
Como os pais podem ajudar a criança com síndrome de Down a se desenvolver?
Uma das características na qual eu acredito para o desenvolvimento das crianças com síndrome de Down é a motivação. Quanto mais os pais motivarem essas crianças, logo de pequenos, de bebês, seja na estimulação precoce, seja nas atividades de fisioterapia, nas brincadeiras, em atividades de natação, de dança, seja o que for, a inclusão deles na escola o quanto antes, com o equilíbrio, o começar a caminhar ou mesmo quando bebê, tudo isso contribui para o desenvolvimento. Como acontece com as crianças ditas normais, de se relacionar com outros, de ter uma aprendizagem no ritmo delas, mas mais fortificada, com vitalidade ao convívio com os outros membros da sociedade, seja com outros com síndrome de Down, seja com crianças ditas normais, este convívio é importante. Os pais erram quando superprotegem. Assim como qualquer outra criança, elas precisam de limites e, então, não existe diferença no modo de educar uma criança com síndrome de Down. Aquela educação de casa, de berço, o que pode e não pode, isso tem que estar esclarecido. Esta base para um bom convívio social que todo ser humano precisa, as crianças com síndrome de Down também precisam. Não existe esta concepção de que elas não têm entendimento, inclusive da própria diferença. Elas sabem que são diferentes e, às vezes, isso vira uma muleta para situações em que os pais superprotegem.
Quer dizer que a pessoa com síndrome de Down é capaz de compreender suas limitações e conviver com suas dificuldades?
Sim. Elas têm noção completa. Inclusive, os pais que protegem demais são, na verdade, servos de seus filhos. Porque, assim como nossos filhos ditos normais, às vezes, dizem para nós “ah, estou com dor de cabeça e não quero ir à escola”, “ah, hoje não quero fazer tarefa”, elas também fazem isso. E, se você começar a dar vazão para esse tipo de coisa, verá que essa malandragem, usada por qualquer criança comum, também é utilizada por aquelas com síndrome de Down. É uma coisa sobre a qual elas têm noção e articulam muito bem em proveito próprio, quando necessário. Elas têm noção, sim, sabem que são diferentes, sim, percebem quando alguém está olhando com dó, pena. E elas também aproveitam esse momento. São crianças como qualquer outra nesse sentido, têm seus momentos de esperteza. A sexualidade também é algo normal, como qualquer ser humano, não dá para negar! Existem alguns mitos, algumas histórias em relação à sexualidade exacerbada, mas isso não é real, também tem a ver com a questão do limite, da educação, de saber se portar socialmente. A família é muito responsável por essas questões. Obedecer às regras e saber ouvir um “não” vêm de casa. Às vezes, o problema está na superproteção dos pais, e não na própria síndrome.
Falar em síndrome de Down hoje vai muito além de apenas compreender a existência do cromossoma a mais que faz surgir as características do Down. Hoje, fala-se em educação inclusiva. Como ter certeza de que um aluno com deficiência está apto a frequentar a escola?
Todas as crianças têm direito, pela lei e pela declaração de Salamanca, da qual o Brasil é um de seus signatários, à educação – vem esta mensagem nessa declaração, que fala o tempo todo de inclusão, e não só das pessoas com deficiência, mas de outros excluídos também. No item educação, coloca muito claramente que todo ser humano tem direito à educação, e isso é uma coisa que a gente não pode sequer discutir se vai ou não, é um direito. Depois disso, vem a questão do desenvolvimento desse aluno, dessa criança. Se a escola especial acha que ele tem condições de sair da escola especial e ir para a escola regular, há uma série de formas de avaliar: se ele foi alfabetizado, como se relaciona com os colegas, a questão do equilíbrio emocional, da destreza, da coordenação motora, uma série de itens que podem ser avaliados. Porém, esta preparação para a inclusão não precisa, necessariamente, começar na escola especial, a criança pode ir diretamente para a escola normal, regular e participar das salas de recursos multifuncionais; é política de educação e ocorre no contraturno da escola. Geralmente, é na mesma escola em que o aluno está. Não se trata de reforço escolar, mas de atividades que vão desenvolver as lacunas que a criança tem em relação às demais, em sala de aula. Um trabalho que o Ministério da Educação desenvolve hoje, que é a base da nossa política de inclusão, é a discussão e o diálogo entre o professor que está na sala de aula com o professor da sala de recursos, no contraturno. Os dois precisam conversar para desenvolver, ambos, um trabalho compartilhado para ajudar no desenvolvimento desse aluno.
Quais são as políticas públicas necessárias para a inclusão efetiva?
O Brasil tem uma característica muito interessante. Nós temos ótimas leis, ótimos programas, somos considerados, em vários aspectos, um país adiantado em relação aos outros. Porém, eu acredito que falta um pouco de efetivação destas leis. A própria sala de recurso multifuncional, a ideia dela surge para que exista em cada escola pública uma sala como essa. Hoje, em Campo Grande, temos apenas oito, divididas por regiões da cidade. É insuficiente, deixa muito a desejar. Existe falta de preparo para que se dê apoio às famílias para que possam levar as crianças até esses locais. Além do que, a questão da formação dos professores que estão em sala de recurso multifuncional é muito preocupante. Se você pegar a legislação, verá que há exigência de uma série de coisas, Libras, uma série de complementos na formação que esses nossos professores não têm, ou têm muito incipiente dentro do curso, têm que fazer uma complementação se quiserem realmente atuar na sala de recurso multifuncional.
As turmas com alunos com deficiência devem ser menores?
Sim. Aliás, em todas as turmas, com deficiência ou não, nós precisamos ter um pouco menos de alunos, estamos transformando as salas de aula no Brasil em depósito de alunos; há muitos anos o País tem feito isso. Às vezes, uma sala tem 50 alunos adolescentes ou crianças no Ensino Fundamental. É impossível ter qualidade no ensino com tanta criança ao mesmo tempo. Não há condições para o professor fazer um trabalho decente desse jeito. Quanto mais, melhor? Isso eu coloco como uma reflexão tanto para o ensino regular quanto para o ensino inclusivo. A qualidade vem do atendimento, da atenção que o professor tem que ter com todos os alunos, independentemente se é deficiente ou não.
Há um grupo de trabalho que promova essa educação em MS?
Nós temos, dentro da Universidade Federal de MS, vários grupos de estudo e pesquisa que são vinculados a programas de pós-graduação (mestrado e doutorado em Educação). Eu mesma coordeno o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Especial e Múltiplas Linguagens. Desenvolvemos todo nosso processo de pesquisa, as publicações, a socialização em congressos nacionais, internacionais, enfim, voltados para a educação, principalmente a especial. E aí os nossos alunos vão se direcionado para esses grupos, para começarem a estudar mais sobre o assunto que gostam – são vários grupos. Nós temos um grupo que discute inclusão, outro que discute sobre deficiência e inclusão, e o meu, que discute Educação Especial e múltiplas linguagens. Por que o meu discute dessa forma? Porque nós acreditamos que existe um conjunto de linguagens que nos torna seres humanos no convívio com outros seres humanos: é a linguagem artística, lúdica, e este é o motivo pelo qual eu fui estudar semiótica.
Ainda é difícil incluir a pessoa com síndrome de Down no mercado de trabalho? Por quê?
Sim, ainda é, embora eles tenham uma habilidade muito interessante quando vão desenvolver o trabalho – geralmente, nós os vemos em redes de supermercado, em empresas maiores; quando é explicado qual é o trabalho, eles não têm aquela malícia do funcionário comum de fazer mais ou menos. Se você ensinar para o Down que todos os dias ele tem que chegar e colocar determinado produto em determinada prateleira, ele vai colocar exatamente no lugar que você mostrou, com a distância que você solicitou de uma caixa para a outra, o que for, sistematicamente. A repetição, a imitação, é uma característica deles. Eles são muito valorizados, geralmente, em trabalhos que necessitam dessa sistemática de estar sempre igual, sempre organizado. Eles são excelentes. Hoje, o mercado está começando a perceber essa característica, inclusive essa coisa de ser extremamente correto, sério no trabalho que faz. Isso tem mostrado para as pessoas que eles têm capacidade de exercer funções, sim. A grande questão é, ainda, o preconceito das pessoas, o preconceito em relação à capacidade. Algumas pessoas dizem que eles são agressivos, mas, ao contrário, a pessoa com síndrome de Down é extremamente afetiva; há preconceito com o visual, com a aparência. Mas, quando você conhece a pessoa com deficiência, desenvolve o trabalho com ela, percebe quão afetivos eles são, e muito sinceros.
O que falta para que esta inclusão social e educacional do Down ocorra de forma plena em MS e no Brasil?
Eu acredito em algumas questões. O grande problema é a resistência das pessoas e a ignorância sobre o tema. A pessoa vem com uma construção, uma representação social daquilo, baseada no senso comum. Ela nunca leu nada, não sabe nada sobre aquilo, mas ela tem aquela representação que é a incapacidade e, junto da incapacidade, a sexualidade exacerbada, a agressividade. É uma fantasia tão terrível, que quase transforma esse ser humano num monstro que anda e respira. E isso não é verdade. É preciso quebrar o preconceito e tentar conhecer um pouco mais sobre o Down. Ninguém pode dizer quero ou não quero antes de realmente conhecer alguma coisa. O segundo momento que eu vejo é a formação dos professores, que precisa ser vista de uma forma mais séria. Nos cursos de licenciatura, há poucas horas na disciplina de Educação Especial, a maioria das vezes ministrada por professores que não têm iniciação científica alguma na área e, às vezes, dão aula usando termos equivocados, algumas vezes, contra a inclusão, até. Em vez de promover, mostrar os benefícios e tentar quebrar os preconceitos, está reafirmando coisas, porque não tem conhecimento adequado daquilo.
CRISTINA MEDEIROS, Correio do Estado